PRÓLOGO
Observando os acontecimentos do mundo, assim cantava em uma só voz o coro dos anjos e santos:
Pobre alma, é claro e manifesto
Tal aflição não merece o inocente
Deve reconhecer o coerente:
Faz-se justo seu protesto
Se pudessem ao menos ouvir
Mas ninguém ouve seus gritos
Onde estão os heróis dos mitos
Com suas espadas a rangir?
Ó criança de sonho singelo
De ti foi tolhido tudo
Porque o destino o pôs para ouvir
A canção em seu tom mais belo
Não serviu de escudo
Para aqueles que tu amava cobrir.
-
Também tu, jovem mulher
Perdestes tão cedo teu amado pai
Agora parece solitária sem saber para onde vai
E nem sabes o que quer
Seus vizinhos não entendem o que acontece
Teu agressor engana
Sem perder jamais a boa fama
O povo dá louvores a quem não merece
Mulher, sua conduta é irrepreensível
Suporta tudo com resiliência
Se arrisca para dar a todos alimento
Ao mundo seu mérito é invisível
Mas tenha paciência
Teu quinhão é bem maior que o sustento
-
Deus, por nós tão querido
Sabes que por ti ofereceríamos até a vida em sacrifício
Para Tua onipotência nada é difícil
Por isso escuta nosso pedido
Seja a espada na mão desses coitados
Tão poderosos seus inimigos
Solitários estariam perdidos
Indubitavelmente derrotados.
Mas aqui existimos porque confiamos
Na força da Divina Providência
E somos recompensados todos os nossos dias
A ti de joelhos nos humilhamos
Pedimos então com reverência
Guia
o caminho de Alessandra e Golias.
CAPÍTULO I – O LENHADOR MALDITO
Já era noite e a chuva não havia cessado por um segundo sequer em meio àquele matagal escuro e opressivo. A maioria das pessoas provavelmente optaria por voltar para casa e retornar no dia seguinte, mas isso não estava de acordo com o gênio daquela mulher que se recusava a voltar com as mãos abanando depois de tanto tempo vagueando pela floresta. Ela sabia que retornar ou parar agora serviria como pretexto para que seu padrasto a acusasse de ociosidade e nada poderia irrita-la mais do que dar pretexto para o vagabundo reclamar.
Seguiu então seu caminho, suportando o vento frio que a noite trazia, protegida por nada além de suas roupas encharcadas pela chuva. Andando apressadamente, acabou tropeçando na raiz de uma árvore, indo com o rosto ao chão. Ao levantar a cabeça, viu Alessandra algo que a assustou profundamente: haviam ossos humanos escondidos na grama alta logo a sua frente.
- Ossos? Não sei o porquê de estarem aqui, mas isso não pode ser sinal de coisa boa – pensou ela, se levantando devagar e cuidadosamente para não atrair nenhum perigo para si.
Ela parou por um momento para olhar ao redor. Estava bastante tensa. Sua mente rememorava todos os seus medos mais irracionais, que acabavam por ganhar certa verossimilhança graças ao breu que a tudo escondia. A situação tratou de corroborar as expectativas da jovem caçadora, pois que ela ouviu um estranho e longo berro ecoando pela floresta, berro que parecia de uma fera, mas que a caçadora pode discernir ser humano.
- Quem está ai? Revele-se! Aonde você está? – Disse apanhando seu arco enquanto tentava escutar qualquer barulho suspeito.
De forma inesperada, a assustada caçadora pode ver com seus próprios olhos quando a árvore que estava logo a sua frente mostrou que possuía em seu tronco dois olhos escuros e profundos, uma boca com dentes pontiagudos e dois galhos bem grossos que se ramificavam em galhos menores como se fossem dedos. Em momentos como esse, não há tempo de refletir muito sobre o que era aquela coisa e o preconceito era sinônimo de prudência. Rapidamente disparou ela uma flecha no olho de seu adversário, sem grades proveitos, visto que a flecha entrou pelo olho oco da criatura, se perdendo dentro dela.
- Então conseguiu me ver! Usualmente ninguém chega a tanto... – respondeu a árvore ao questionamento feito com uma risada maliciosa.
- Mas o quê? A árvore? – Exclamou Alessandra gaguejando de medo
- Sua falta de sabedoria é a razão pela qual você será devorada! Não sou árvore, mas homem! Fui aprisionado nessa forma devido aos meus pecados – disse a criatura, com profundo ressentimento em sua voz.
- Não minta para mim, você é um monstro e nada mais do que isso! – retrucou Alessandra enquanto se contorcia para tentar se libertar.
- Insolente! Saiba que eu fui homem comum e trabalhador, morri aqui mesmo nessa floresta enquanto cumpria meu trabalho. Aquele fatídico dia… quão maldito é o espírito daqueles que tem carne! Os odeio com ódio invencível! Enquanto buscava madeira para uma encomenda cara de fora do vilarejo, fui picado por uma cobra e os meus companheiros me deixaram para morrer. Disseram aqueles hipócritas que um homem como eu não valia o preço de um tratamento. Morri nessa floresta, mas minha alma não descansou. Revivi em forma de árvore, me sentindo bem mais forte do que jamais fui em vida. Vinguei-me de meus companheiros e os devorei lentamente desde suas entranhas até me locupletar com sua pele. Desde então, faz anos que eu devoro todos que cruzam meu caminho, e agora você terá o privilégio de ser meu jantar.
A caçadora então disparou mais uma flecha contra a criatura, mas essa foi tão inefetiva quanto a primeira, ricocheteando em direção ao chão. Por sua vez, a aberração partiu para o ataque, tentando segurar Alessandra em suas garras, mas ela foi ágil o suficiente para desviar de suas mãos pesadas. Ela recuou e tentou fugir da batalha, mas a terrível árvore não permitiu que o plano da moça se concretizasse, derrubando-a no chão com uma de suas raízes.
O lenhador condenado ergueu o corpo da mulher, que se debatia bastante para escapar sem nenhum êxito. A amaldiçoada árvore então aproximou Alessandra da sua boca, mas antes que pudesse dar a primeira mordida, a caçadora reagiu, tirando de sua bota um facão que serviu para cortar a raiz que a puxava, fazendo-a cair de volta ao chão. Isso deu alguma esperança para Alessandra, que agora segurava a faca com convicção de que ela seria suficiente para a proteger. O almaldiçoado, raivoso por ter sua raiz cortada, se utilizou de suas mãos poderosas para reerguer a donzela, dessa vez segurando suas duas mãos, de forma que não haveria qualquer chance do facão ser utilizado novamente. Alessandra viu que seu fatídico fim se aproximava a medida que a terrível criatura se preparava para a abocanhar. Ela se esforçava para não ser engolida, colocando seus pés nos lábios da criatura e tentando resistir a força da mão poderosa que a pressionava.
- Droga, eu não tenho a mínima chance – disse Alessandra, aceitando pesarosamente o seu infeliz destino.
Arte conceitual do capítulo:
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