O autor da famosa série “Senhor dos Anéis”, Tolkien, escreveu também um livro (“O Silmarillion”) onde ele tenta descrever os primórdios daquele universo imaginário em que as aventuras se desenrolam. Este universo começa com Eru, o Único, que criou seres sagrados (Ainur) para os quais ele propunha que cantassem uma música, cada qual a sua forma e eles obedeciam, cantando em uma progressiva unidade e harmonia. Um dia, Eru chamou a todos os Ainur e conclamou para eles que cantassem a Grande Música, a qual todos eles iriam cantar harmoniosamente até mesmo ao Vazio, que deixaria de ser vazio1. É sobre essa Grande Música que falaremos aqui.
Estórias fictícias não são retratos fiéis da realidade, mas se enganam aqueles que acreditam que a ficção nada nos pode ensinar. Através da ficção não chegamos aos fatos brutos, mas é da própria natureza dela uma certa conexão com a realidade. Uma estória bem contada deve conseguir fazer com que o leitor sinta o mundo imaginário como possível e razoável, e assim ela o faz através de um desenvolvimento tão logicamente coerente como uma fórmula matemática2.
A narrativa da Grande Música impressiona porque sentimos que soa aos nossos ouvidos como dotada de verossimilhança. Parece algo da realidade. Isso se dá porque ela é uma representação clara de como os seres humanos percebem o mundo através de suas faculdades inquisitivas. Na contemplação serena do mundo, todos nós podemos encontrar a grande harmonia da existência, a Grande Música de Eru. Tanto isso é verdade que explicarei o assunto apelando para outro autor ficcional que nos evoca essa mesma questão, que é William Shakespeare. Em “O Mercador de Veneza” 3 lemos o seguinte:
“Sentamo-nos aqui e consintamos que nos ouvidos penetre a música. O tranquilo silêncio e a noite servem para realçar uma harmonia amena. Senta-se aqui, Jessica, e observa como se acha o soalho do céu todo incrustrado de pedacinhos de ouro cintilante. Não há estrela, por menor que seja, de quantas ai contemplas, que em seu curso não cante como um anjo, em consonância com os querubins dotados de olhos moços. Na alma imortal essa harmonia existe”.
(ATO V, CENA I)
Vejamos aqui que o brilhante escritor inglês vê essa Grande Música na contemplação do céu à noite. Essa música é unívoca, mas sua harmonia se dá através da canção cantada por cada estrela em particular. Essa tal harmonia a que os autores se referem é o que a filosofia grega chamou de Logos. Este conceito é fundamental na história da humanidade e Graças à compreensão dele, pudemos avançar no caminho para o desenvolvimento dos estudos científicos e filosóficos.
Dito isso, faz-se mister aqui darmos algum tipo de definição mais técnica que nos permita deixar claro sobre o que exatamente estamos falando. Para tanto, tomamos emprestadas as palavras de Mário Ferreira dos Santos, com grifos nossos:
“Falar-se do logos de alguma coisa, é falar do fundamento dessa coisa, pois uma coisa é o que é pela razão íntima do seu ser, seu logos, a sua lei. Assim, reunindo todos os conceitos de logos vemos que é lei, princípio e relação. Princípio porque para que uma coisa seja é necessário ser algo, seu princípio é, pois, o mais íntimo de seu ser, já que este ela não é. Lei, porque o que impõe que algo seja, é esse princípio, e relação porque nesse conceito está o referir-se a alguma coisa ou a si mesma ou além de si mesma, a outro ser
...
O logos, pois tem um logos, a sua razão. E o logos dos logos desvela-se para nós porque é alguma coisa, e o que é alguma coisa tem uma razão de ser em si ou em outro... Todo ser tem uma razão eidética, que é a sua última essência, a sua última razão de ser, a sua essência ontológica, distinta, sob certo aspecto, da essência lógica, porque esta é a que cai na definição, enquanto aquela é a revelação de sua última razão, evitando-se a confusão entre a razão lógica e a ontológica de uma coisa” 4.
Vamos tentar deixar o mais claro possível aqui a explicação do eminente mestre Mário, tentando ilustrar ela com os recursos de literatura que havíamos mencionado antes. O logos está sendo tomado aqui sobre duas perspectivas, uma delas é a do logos de uma coisa específica e a outra é um Logos maior, considerado o logos do próprio logos. Na hipótese individuada, nós temos os objetos falando sobre si, tal como as estrelas de Shakespeare ou os Ainur de Tolkien, que cantam de acordo com o que são. Por outro lado, no logos dos logos, temos Eru, compondo a Grande Música que todas as coisas cantarão à sua forma sem perder a harmônia.
Ora, nós sabemos que todas as coisas que existem, possuem essa música própria que chamamos de logos. Mas se cada coisa possui uma música em particular, o próprio conceito de música deve ter a sua música e essa música deve ser a melodia que dá a harmonia para todas as outras no universo. Essa harmonia no universo enlaça de tal forma todas as coisas, em suas relações íntimas e recíprocas, que podemos dizer que nada escapa do seu afeto. Por isso mesmo, chamarei essa harmonia aqui de Amor, pois que só por essa palavra conseguimos compreender a profundidade dessa relação.
É por compreender essa verdade que os seres humanos se tornaram capazes de desenvolver a ciência e a filosofia. O tranquilo silêncio que nossa mente faz para ouvir a “música das estrelas” é o mesmo do investigador científico quando se propõe a investigar um determinado objeto, evitando que suas intervenções pessoais maculem a pureza da canção. Mas esse silêncio que nos conduz a ouvir as estrelas também nos faz perceber que elas não estão absolutamente isoladas, mas que existem em meio a uma grande miríade de coisas distintas que se relacionam entre si dentro do Amor.
1 TOLKIEN, John Ronald Reuel. The Simarillion. Boston: George Allen & Unwin Ltd, 1977. Página 15.
2 CHERSTERTON, Gilbert Keith. Ortodoxia. 2.Ed. São Paulo: Mundo Cristão, 2017. Página 66.
3 SHAKESPEARE, William. O Mercador de Veneza. Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/cv000094.pdf. Acesso em: 20 abr. 2020.
4 DOS SANTOS. Mário Ferreira. Dicionário de Filosofia e ciências naturais. São Paulo: Matese, 1963.
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