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O APÁTRIDA CAPÍTULO II – A tragédia do jovem Golias

 Nasci na Cidade dos Ipês, que ficava pico da montanha mais alta de toda a região central do Império. Era um lugar muito bonito, onde podíamos olhar para qualquer direção e ver as nuvens bem de perto, assim como olhar para as belíssima flora rosada que dá o nome à região. Era um lugar muito bom de se viver, visto que o rio ao redor dificultava a possibilidade de invasões estrangeiras, assim como a natureza nos fornecia recursos suficientes para vivermos uma vida pacata e confortável. Por esses motivos, cultuávamos muito a deusa da paz Anatólia, que parecia olhar com carinho para nós. As coisas só vieram a desandar a partir do dia do meu décimo primeiro aniversário.




- Em homenagem ao seu aniversário, hoje nós te daremos algo que você sempre quis: um violino! - disse meu pai no café da manhã, para minha imensa alegria.


- Nossa papai, não sei nem como agradecer! Eu vou treinar muito para tocar que nem o grande Michkin!


Se isso já não fosse suficiente para me deixar feliz, eis que minha mãe me traz mais uma surpresa: o grande Michkin estava apresentando naquele dia uma performance na cidade a convite do rei. Nunca na vida havia ficado tão feliz quanto naquele momento. Meus pais foram antes de mim e combinamos de nos encontrar na praça da cidade às três da tarde.


Nesse meio tempo, aproveitei para me vestir com a melhor roupa que tinha e logo sai em direção à praça da cidade. Desde o segundo que atravessei a porta de casafoi possível ouvir a música de Michikin ressoando por toda a cidade, uma melodia bem suave, mas cuja profundidade e complexidade dificilmente poderiam ser imitadas por qualquer outro músico. A harmônia das notas se espelhava nos corações dos ouvintes, reordenando aquilo que lá dentro estava bagunçado.


Chegando na praça, meus pais estavam olhando para a entrada e me repreenderam por demorar demais para chegar. Eles estavam certos, eu realmente deixei a música levar a minha imaginação e acabei demorando mais do que deveria. De qualquer forma, havia chegado em um momento bem oportuno: Michikin tinha acabado de terminar sua música e estava falando para o público:


- Senhoras e senhores, um momento de sua atenção por favor! Primeiramente, vocês gostaram da música? - a multidão reunida na praça mostrou sua resposta com demorados aplausos. Com um sorriso no rosto, Michikin então anunciou - Pois então, vou mostrar a vocês a minha música favorita, espero que ela toque vocês tanto quanto me toca.


Todas as pessoas fizeram silêncio, ansiosas pela grande melodia que o grande musico iria tocar. Quando ouviram o som que saia do violino dele, todos ficaram impressionados. Era o som mais bonito que qualquer ser humano jamais fez. Não. Mais que isso. Foi o som mais bonito que qualquer criatura já fez. Talvez ele merecesse um lugar no panteão dos deuses por tal obra que só poderia rivalizar com a beleza da própria natureza.


Durante a performance, era visível que Michikin estava sentindo muitas dores, se mantendo concentrado em tocar aquela música com muita dificuldade. A medida que o tempo passava, os sinais de dor do cantor ficavam mais claros. Lentamente ele foi se arqueando e passou a escorrer sangue por todas as cavidades de sua face, mas a música não parou. O céu, que estava límpido até então, começou a ser tomado por nuvens carregadas. Todo o ambiente assumiu uma tonalidade estranha, uma mistura única de tons de roxo e preto.


Meus pais perceberam que aquilo não poderia indicar nada bom. Minha mãe então olhou para meu pai como quem inqueria sobre o que estava acontecendo, mas o rosto dele estava igualmente confuso. Ele sabia que uma decisão havia de ser tomada o quanto antes e sentia essa estranheza da mesma forma que ela. Então tomou-me pela mão e disse para sairmos daquele lugar de imediato em direção a casa.


Foi então que a chuva começou a cair. Não uma chuva qualquer, mas uma com cor de sangue. Suas gotas queimavam em contato com a e pele como um tipo de ácido. Vi pessoas jogadas no chão, agonizando enquanto suas vestes e seus corpos eram lentamente consumidos. Terríveis vermes canibalizavam os cadáveres dessas pessoas. Começavam pequenos como um pingo d’água, mas na medida em que devoravam a carne humana, adotavam uma bizarra forma antropoformocizada. A minha consciência me negava o equilíbrio, dissolvia-se. A realidade mostrou sua face brutal e eu não estava pronto para suportar tanto.


No meio da confusão e dos empurrões, meus pais sumiram. Eu estava só em meio ao inferno. Não sabia se eles estavam vivos, e, acima disso, nem sabia se poderia escapar com vida daquele caos. Na verdade, tudo indicava o contrário. Fiz então a única coisa que me restava fazer. Corri em direção ao portão da cidade, tentando ao máximo não levar em conta a dor que o ácido fazia em contato com meu corpo ou mesmo a tristeza que me assolava sempre que olhava para o lado e via as pilhas de corpos que se amontoavam ao meu redor. Não havia tempo para pensar.


Não foi difícil chegar até o portão da cidade, mas isso não significava que o terror havia acabado. Logo em frente ao portão eu vi uma daquelas criaturas. Mas essa em particular não era como as outras, ela era muito maior. Era um grande verme com duas pernas musculosas, corpo curvado para frente e presas afiadíssimas. O monstro estava ocupado comendo algum cadáver desfalecido.


Seria essa minha oportunidade para passar sem ser notado? Nada naquele dia podia ser tão fácil assim. A mulher em questão era nada menos do que a minha mãe. Então eu chorei e gritei por ela, chamando a atenção do terrível monstro para mim.


 
Comida... eu PRECISO de mais comida! - gemia a criatura com uma voz que espelhava uma enorme dor.


Então a terrível besta partiu em minha direção, deixando o corpo de minha mãe de lado. A besta era forte e veloz, mas eu, apesar de não ser forte, era igualmente ágil e possuía uma grande vantagem: era pequeno. A monstruosidade corria com passos fortes deixando rastros de sua pegada no caminho e tentava me surpreender com grandes saltos que me obrigavam a mudar de direção. Eu não pude desviar indefinidamente e ela conseguiu me encurralar próximo a uma árvore. Eu sabia que era o fim. A criatura avançou contra mim e me derrubou. Eu fechei os olhos esperando o pior.


- FILHO! - exclamou uma voz masculina que se aproximava.


Era meu pai. Ele chegou correndo e desferiu um soco na cara da besta. Naquele momento éramos eu e meu pai contra aquela coisa. Ou ao menos era o que eu queria fazer, mas meu pai não consentiu.


- Filho, eu quero que você fuja daqui o mais rápido possível - eu não podia nem acreditar naquilo, pensei nos meus melhores argumentos e tentei falar alguma coisa, mas meu pai leu minhas intenções e me interrompeu - SEM DISCUSSÕES, ISSO É UMA ORDEM!.


Tentei dizer alguma coisa, mas nada saiu da minha boca. Então virei de costas chorando e corri. Meu pai sorriu brevemente com olhos marejados, mas seu semblante voltou a seriedade sabendo que teria de lidar com a besta que, inicialmente assustada pelo golpe, passou a entender sua superioridade ante ao agressor. Algo como se sacrificar pelos mais fracos nunca poderia passar pela mente de um animal, é uma loucura que somente poderia ocorrer ao ser humano. Só o homem vê além da lei do mais forte e em sua morte meu pai foi tão humano que pareceu ir além. Ouvi o som dele caindo e, por fim, o de uma criatura faminta mastigando.

Leia o prológo e o capítulo 1 clicando aqui

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